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segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Urgência e limites da desmilitarização da polícia no Brasil

Urgência e limites da desmilitarização da polícia no Brasil



Os métodos repressivos de controle social acentuados durante a ditadura militar que assolou o Brasil entre 1964 e 1985 não desapareceram com a abertura democrática. Pelo contrário. Além da prática de acumular presos, torturados, mortos e desaparecidos, a manutenção das técnicas de coerção vem confirmando o verdadeiro caráter da polícia militar
25/11/2013
Camilla Marcondes Massaro
“Quem não reagiu, está vivo!”. A frase foi dita pelo Governador de São Paulo – Geraldo Alckmin (PSDB) para justificar a morte de nove pessoas por policiais da ROTA em uma chácara no interior paulista em setembro de 2012. Mas o mote vem servindo para vários desfechos: manifestações populares, reintegrações de posse (de terrenos, de moradias, de reitorias, de prédios públicos), ou qualquer ato que “ameace a ordem vigente”.
Os métodos repressivos de controle social acentuados durante a ditadura militar que assolou o Brasil entre 1964 e 1985 não desapareceram com a abertura democrática. Pelo contrário. Além da prática de acumular presos, torturados, mortos e desaparecidos, a manutenção das técnicas de coerção vem confirmando o verdadeiro caráter da polícia militar (referendada pela Constituição de 1988). O propósito de garantir a segurança pública se verifica no assombro que causa sobre todos aqueles que das mais diversas formas enxergam que as coisas não transcorrem muito bem no Brasil da Copa, e, principalmente no terror que exerce sobre a população mais pobre, segregada nas periferias das grandes cidades de nosso país.
A força deste legado se mostra já nos anos de 1990, com o massacre do Carandiru, a chacina da Candelária, o caso da Favela Naval, a contenção de tantas rebeliões da FEBEM; nos anos de 2000, com a repressão pelo batalhão do choque à greve dos professores na Av. Paulista, os cerca de 500 assassinatos de civis somente na segunda quinzena de maio de 2006 em São Paulo, as desocupações das reitorias da USP e da UNESP/Araraquara no ano seguinte, o confronto na Marcha da Maconha, chegando aos nossos dias com a desumana reintegração de posse no Pinheirinho em São José dos Campos, a instauração das UPPs no Rio de Janeiro, o horror das intervenções nas chamadas cracolândias, os assassinatos de rappers e MCs em São Paulo, principalmente na Baixada Santista, a truculência contra as manifestações no mês da Copa das Confederações em diversas cidades brasileiras, contra os atos em oposição às usinas de Belo Monte e Jirau, o massacre dos povos indígenas, as mortes nas periferias promovidas por homens encapuzados – que nada têm com os Black Bloc – e tantos outros fatos.
Mas foi com as jornadas, que se iniciaram no mês de junho deste ano em torno de mais uma luta do MPL contra o aumento das tarifas de ônibus em diversas cidades brasileiras – quando os milhares de manifestante foram duramente reprimidos principalmente pelas polícias de São Paulo e do Rio de Janeiro - que a urgência do debate sobre a desmilitarização da polícia voltou à ordem do dia.
Durante muito tempo a performance da polícia militar pela atuação de guerra permaneceu concentrada na periferia, atingindo especialmente os jovens do sexo masculino, negros e pobres, cujas práticas eram relevadas e muitas vezes legitimadas como parte da chamada “guerra ao tráfico”. Contudo, nas Jornadas de Junho foram atingidos jornalistas da grande mídia, estudantes de classe média e média alta, e diversos outros “cidadãos de bem” trazendo a violência policial, naturalizada nas periferias, aos centros das cidades.
Mesmo com os impactos negativos decorrentes dos abusos cometidos na contenção das manifestações de junho, as ações desastrosas das polícias militares não cessaram. Pelo contrário, nos últimos meses aconteceram, entre inúmeros outros episódios não revelados, a chacina da Maré, a repressão aos atos dos professores especialmente no Rio de Janeiro, a morte por tortura do pedreiro Amarildo dos Santos, o assassinato de Ricardo Gama funcionário da UNIFESP após discutir com policiais, a violência contras as manifestações no dia 7 de setembro em várias cidades, a morte de dois adolescentes num intervalo de dois dias na mesma região da periferia de São Paulo, um por um suposto tiro acidental em que a vítima fez a pergunta “Por que o senhor atirou em mim?” e o outro numa suposta tentativa de assalto.
Estas duas mortes reacenderam a chama dos protestos com interdição de importantes rodovias, caminhões, ônibus e carros incendiados, numa série de atos realizados pela comunidade dos adolescentes, cansada de crimes e abusos cometidos pela polícia militar. A reação do comando da polícia foi imediata: disparou a notícia de que tais protestos estavam sendo articulados pela “facção criminosa que age dentro e fora dos presídios”, ou seja, o PCC. Essa vinculação – que não foi comprovada até o momento – serve como meio de legitimar as ações ainda mais violentas por parte da polícia que não estaria lidando com cidadãos em seu direito legítimo de protestar, mas com o “crime organizado”.
O que faz a nossa polícia?
Em teoria, a polícia deveria servir para proteger os cidadãos. Mas, por ser o braço armado do Estado que, por sua vez, é parte constitutiva do capital, em última análise é a serviço desta que a polícia está. Nos casos em que a polícia é militar – como no Brasil – o quadro se agrava, pois presta a serviço à propriedade privada numa lógica em que a hierarquização e o treinamento da instituição se pautam na preparação para a guerra.
Além disso, devemos considerar que a hierarquia que divide os militares em dois grupos, os oficiais e os praças, também tem um caráter de classe social. Enquanto os primeiros possuem formação de elite, saem das escolas de formação como aspirantes e, findo o estágio, recebem a patente de segundo tenente (no caso de SP o ingresso à Academia do Barro Branco é feita pelo vestibular da FUVEST, o mesmo da USP), os praças ingressam por concurso público como soldados e a probabilidade de se tornarem oficiais é muito pequena. Importante ressaltar que muitos candidatos prestam a prova não pelo desejo de proteger a sociedade, mas porque ser concursado significa ter estabilidade no emprego.
Afora a divisão de classe apontada acima, o treinamento militar embrutece os policiais que são humilhados de diversas formas, respeitando-se a hierarquia da instituição. Não admira que o soldado – mesmo no posto mais baixo da instituição– reproduza as humilhações recebidas de seus superiores na população, perpetuando um ciclo de violência cujo fim é impossível vislumbrar. Mais que isso, na maioria dos casos de grande repercussão a punição é individual, sendo o soldado, o cabo, o sargento afastado e punido – quando há punição – enquanto os oficiais que permitem e muitas vezes ordenam as ações violentas saem ilesos.
Não podemos desconsiderar que o grupo dos policiais militares não oficiais, assim como a imensa maioria dos trabalhadores no Brasil – e no mundo –, são mal remunerados, trabalham em condições precárias e com grande pressão, fatores que corroboram para as práticas violentas no trato com a população. Tais condições são tão nefastas que existem policiais militares – principalmente praças, mas também oficiais – que vêm se posicionando a favor da desmilitarização.
Assim, considerando os interesses do Estado e que, oficialmente, não estamos em guerra declarada, o inimigo a ser combatido é aquele que potencialmente pode colocar em risco a ordem, ou seja, a imensa parcela da população mais afetada pelas consequências das políticas econômicas dos nossos governantes: os trabalhadores pobres, perigosos para a ordem do sistema. Obviamente, portanto, a polícia está muito mais voltada à defesa do capital e da propriedade privada que à proteção do ser humano.
Neste sentido, a “guerra ao tráfico”, as violações aos direitos de cidadania e aos direitos humanos com blitz abusivas, revistas humilhantes, detenção para averiguação, os assassinatos pautados nos “autos de resistência”, além da crescente criminalização dos movimentos sociais são máscaras utilizadas naquela que é uma verdadeira “guerra aos pobres”.
E, se é uma guerra, o treinamento e as ações têm um alvo muito claro: eliminar o inimigo. Deste modo, não se trata apenas de despreparo ou erro individual que recorrentemente ocorre durante as ações policiais, mas sim de uma ideologia extremamente violenta arraigada na polícia enquanto instituição militar.
Resultado: a polícia brasileira é uma das que mais mata no mundo num quadro em que o Brasil apresenta números ainda mais preocupantes que países em guerra. Além disso, carrega o título de um dos países que mais encarcera no mundo. Em dezembro de 2012, por exemplo, eram quase 550 mil pessoas presas no país da Copa, um número que muito provavelmente irá crescer até lá.
Mudanças legais e mobilização popular.
Tendo em vista o que dissemos anteriormente, a militarização da polícia não é responsabilidade exclusiva dos militares que controlaram o Brasil durante a Ditadura. Desde o século XIX com a Missão Francesa a polícia foi treinada com a hierarquia, disciplina e organização militar.
Contudo, passados quase 200 anos e mesmo depois de 21 terríveis anos sob os auspícios dos militares, a Constituição Brasileira promulgada em 1988 e conhecida como “Constituição Cidadã” – apesar dos embates a favor e contra – manteve a polícia nos moldes militares como responsável pela segurança e manutenção da ordem pública.
Atualmente, estão em tramitação algumas propostas entre projetos de lei (PL) e projetos de emendas constitucionais (PEC) que representam bem a contradição e os limites existentes em torno dos caminhos da segurança pública em nosso país.
Para citar os principais, por um lado temos a pressão para aprovação da proposta da PEC 430 que propõe a unificação das polícias civil e militar e a PEC 102 que propõe alterar o artigo 144 da Constituição, autorizando a desmilitarização das polícias pelos Estados, caso entendam necessário. Há também a PL 4471/12 que acabaria com os chamados autos de resistência e torna obrigatória a investigação dos casos em que há suposto confronto com policiais.
 Por outro, a chamada lei antiterror visa a segurança nacional e dos turistas que virão para o país do futebol, mediante o que são legalizadas medidas que autorizam o uso de balas de borracha para conter manifestações e detenções de qualquer pessoa suspeita. Alguns estados passaram a proibir o uso de máscaras pelos manifestantes, com risco de prisão, mas os policiais continuam atuando sem a placa de identificação.
Nos últimos meses temos visto diversas expressões de mobilização popular sobre a necessidade e urgência da desmilitarização da polícia no Brasil: aulas públicas, debates, passeatas, cartazes em manifestações, diversas reportagens, entrevistas, abaixo-assinados e também a construção de uma grande “Campanha pela Desmilitarização da polícia e da política” organizada por comitês municipais que vem sendo lançados nas últimas semanas.
Essa pressão é essencial para acelerar as mudanças legais. Mas será que tais mudanças resolvem o problema?
Limites da desmilitarização
Em teoria a desmilitarização contribuirá sobremaneira para a diminuição da violência policial. Todavia, desmilitarizar a polícia não é desarmá-la nem retirar-lhe a farda, pressupõe uma mudança de paradigma deixando de atuar na guerra e passando a agir em defesa dos cidadãos comuns.
De nossa parte entendemos que a violência é a principal mediação da polícia com a população e, neste sentido, apenas a mudança legal não é suficiente para encerrar a “guerra aos pobres”. Isto porque, como afirmamos mais acima, a instituição policial enquanto braço armado do Estado – que detém o monopólio legítimo do uso da força – permanecerá a serviço de seus interesses.
Assim, no atual momento histórico em que as contradições se acirram e as perspectivas de soluções políticas e sociais dentro da ordem se mostram inviáveis, a necessidade do controle social se torna condição essencial para o sistema do capital permanecer vivo. O Estado de exceção se torna a regra, inclusive nos países que se orgulham de manterem um Estado Democrático de Direito.
É por esse motivo que nas últimas décadas assistimos a aceleração da militarização no mundo, não só nas guerras entre os países – por motivos nem sempre condizentes com o que é pregado pela grande mídia – e dentro dos países como vimos nos lamentáveis episódios de repressão à Primavera Árabe, mas também em locais que oficialmente não estão em guerra interna, como o Brasil.
Neste sentido, entendemos que a desmilitarização da polícia, embora seja necessária para a diminuição da violência que se espalha no todo social não se coloca como um projeto viável para os interesses do sistema capitalista e, neste sentido esperar uma solução pela via parlamentar é insuficiente. A mobilização e pressão popular é vital nesse momento, pois somente um movimento forte de massas pode ser capaz de impulsionar as transformações sociais necessárias à ruptura do status quo.
Portanto, exigir a desmilitarização é muito mais que o debate sobre a unificação ou não das polícias e que lutar pela alteração na letra da lei, é exigir uma mudança de paradigma do Estado como um todo. É negar os caminhos que o sistema do capital segue rumo à destruição da humanidade e construir uma nova forma de produção e reprodução da vida, baseada na igualdade substantiva, sem a dominação do capital sobre o trabalho.

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